Vamos falar de algo que machuca?

Existe um comportamento que teve um aumento considerável nos últimos 30 anos: a autolesão (ou “cutting” – a palavra em inglês para isso), que se caracteriza pela promoção de cortes superficiais na pele com objetos afiados e que nos faz pensar...

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Existe um comportamento que teve um aumento considerável nos últimos 30 anos: a autolesão (ou “cutting” – a palavra em inglês para isso), que se caracteriza pela promoção de cortes superficiais na pele com objetos afiados e que nos faz pensar sobre a relação do corpo com a expressão de sofrimentos emocionais como sendo uma marca crucial de forma de padecimento psíquico contemporâneo.

Esse comportamento tende a surgir na adolescência e pode se estender pela vida adulta. Observa-se que se instalam na maioria das vezes após acontecimentos dolorosos na vida da pessoa, que causaram uma dor emocional muito grande com a qual o jovem não pôde lidar e nem compartilhar com ninguém.

Ocorre como uma autoagressividade que pode ser facilmente acobertada ao se escolher uma parte do corpo de difícil acesso para outros.

O que acontece é que esses atos são realizados em momentos de grande tensão interna, de algo que não é possível expressar pelas palavras. Ocorrem quando o jovem está sozinho e ele não consegue evitar. Contudo, os cortes surgem como recurso apaziguador.

A tentativa de substituir uma dor por outra constata uma dificuldade de elaboração psíquica e emocional de um evento doloroso.

Os comportamentos podem variar em relação aos lugares do corpo; aos lugares escolhidos da casa/escola para a realização dos cortes; na escolha de objetos ou intensidade do alívio. Mas há um aspecto que sempre se repete, que é a falta de um interlocutor com quem desabafar. O jovem sente que as pessoas não estão nem aí com o que ele está passando em todas as áreas de sua vida. Há muitos sentimentos negativos sobre si e sobre os relacionamentos interpessoais.

Os adolescentes que praticam a autolesão trazem a informação de que antes de se cortar sentem medo, raiva, ambivalência em relação a magoar alguém ou a si mesmos, um sentimento de não pertencimento ou de inadequação, além de culpa. Há também a preocupação em esconder os cortes para evitar novo sentimento de culpa, por terem agido dessa maneira.

Geralmente, esse jovem que se corta passa por dificuldade de falar sobre os próprios sentimentos e costuma apresentar autocrítica exacerbada.

Não há um outro para receber a mensagem de dor e há dificuldade da própria pessoa em admitir que está sofrendo, aflito ou muito triste. Se a dor não chega a ninguém, não ressoa, não repercute, ela permanece na própria pessoa. A dor é redirecionada ao próprio corpo. Ela é inserida num espaço de ausência da mediação do outro. A dor fica na pessoa. Como intensidade. Se houvesse a presença do outro, este ofereceria a função de anteparo do excesso de intensidade e seria um recurso de enfrentamento. No entanto, a pessoa é lançada a um vazio afetivo, difícil de vivenciar, onde lhe é tirada a possibilidade de fazer um apelo ao outro.

Há um sentimento de descontinuidade de si mesmo e a autolesão pode surgir como tentativa (desesperada) de realizar um contorno psíquico do próprio corpo.

Foucault (1980) destacou que com o advento da medicina moderna no final do século XVIII e início do século XIX o interior do corpo foi desvelado (antes visto como um ser unificado e sagrado) e inscrito no campo da visibilidade. Houve o desencantamento do corpo e sua desmontagem em várias partes. O interior do corpo foi revelado e foi mudado o olhar que se tinha acerca dele. Não tem mais mistério. Tem o corpo fragmentado em partes; em órgãos. Pela visão científica são as partes que formam o corpo todo. Teoricamente se pode dizer que o ato de mutilação requer conceber a ideia de um corpo-ser fragmentado. Não há prazer nesse ato. Há um desespero de ordem moral. Lembrem-se, que há muitos sentimentos negativos sobre si e seus relacionamentos interpessoais na mente de quem se corta.

Não são lesões que pertencem a um grupo cultural, são autolesões privadas, sem função de ligar a pessoa a um grupo.

“Sempre se é filho da época em que se vive, mesmo naquilo que se considera ter de mais próprio”, disse Freud em 1897. Em sua teoria ele também disse que ao longo de nosso desenvolvimento dependemos do outro como sendo uma fonte de proteção que nos permite um sentimento de unidade e pertencimento. Mas esse mesmo outro pode nos ser fonte de desproteção, ameaça de abandono e hostilidade. Se uma criança experimenta a vivência de indiferença (inexistência do si mesmo para o outro), pode passar a ter dificuldade de elaboração das intensidades emocionais e carregar isso em seu desenvolvimento.

A promoção da sensação de vida com o ato de se cortar provém deste surgir como tentativa de restauração das fronteiras perdidas do corpo. Inscrever os limites através da pele, e não de uma maneira simbólica. O que causa a perda de limites de si? Uma hemorragia de sofrimento. Situações difíceis, que marcam a pessoa com a sensação de falta de defesa frente a algo avassalador. O corte surge como uma lógica interna, que traz alívio imediato e pode até ser considerado como uma tentativa de ligação. O choque de realidade, a dor consentida, o sangue que corre, religa fragmentos esparsos de si mesmo. E se a intensidade se repete, repete-se o ato.

A repetição demanda o novo numa tentativa de elaboração psíquica das intensidades.

A própria pessoa geralmente não demonstra inquietação com o fato de se autolesionar. Pelo contrário, o jovem fala de grande alívio que sente ao se cortar, mesmo que a aflição volte em cinco minutos. E a literatura psicológica e psiquiátrica traz estudos que mostram que pessoas que se autolesionam estão em busca de um meio de se autocurar e se autopreservar com seus atos.

O alarme é acionado quando um adulto descobre e se preocupa com o fato.

Quando o ato de se causar uma lesão surge, pensa-se no fracasso da palavra. A palavra tem a potencialidade de conexão. Expressão das intensidades experimentadas.

Na adolescência o jovem está exposto a uma gama de sensações, como já vimos aqui. A busca de novos modelos vai exigir o trabalho de o adolescente abrir mão da identidade e do corpo infantis e o obrigará a construir um novo caminho. A consciência de que essas mudanças não são controláveis, pode causar sofrimento.

É importante destacar que o comportamento de se autolesionar não acontece isoladamente. Também se observa no jovem que se autolesiona instabilidade emocional, autodepreciação, baixa autoestima, tristeza recorrente, dificuldade de falar de seus sentimentos e sensações de não pertencimento. Por vezes há perda de interesse nas atividades sociais, na aprendizagem e surge agressividade no convívio da família.

Mas se estes atos estão ocorrendo é sinal de que o adolescente está precisando de ajuda. Para lidar com seus sentimentos, pensamentos, frustrações e desenvolver habilidades para se expressar e lidar com situações difíceis.

Não é difícil observar que os jovens que se autolesionam já o faziam antes dos familiares tomarem conhecimento. Isso alarma bastante os familiares e estes anseiam por orientações para aplacar suas próprias angústias.

É muito importante a família, os amigos e entorno social escutar o que esse jovem tem a dizer sobre si. Antes de se preocupar com o que vai dizer, escutar. A escuta convida a pessoa a endereçar sua dor. Isso pode criar novas marcas e a possibilidade de a pessoa existir na presença do outro e em presença de si mesmo. Como se é.

Procurar uma pessoa como referência ao qual o jovem possa contar e recorrer ao se sentir invadido pelos sentimentos negativos, pode ajudar.

Pergunte ao adolescente: “como você está?”, “está precisando de alguma coisa?”, e quando ele for responder, escute. Permita que ele fale o que sente, não interrompa. Também é muito importante não invalidar o que ele está te contando. Se você for familiar, não se desespere ou sinta culpa. Acolha-o e procure estar aberto para um diálogo sem julgamentos. Seu filho precisa da sua escuta e do seu olhar.

Tentar entender de onde parte o comportamento, aceitar que existem muitas formas de ser, numa complexidade atravessada por diferenças, contradições e conflitos ajuda a esclarecer e não minimizar o que o adolescente está sentindo.

A empatia e comunicação clara e assertiva dos familiares auxiliam o adolescente a aceitar e compreender que sentimentos negativos sobre si podem surgir, possibilitando a criação de estratégias para superar o isolamento e chegar ao outro de forma legítima.

Maria Laurinda Ribeiro de Souza (2003), escreveu “o uso da violência – pensada como tentativa de garantir objetivos a curto prazo, portanto como resposta temporária – pode ser a única forma de ‘dramatizar queixas e trazê-las à atenção pública´”.

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